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quinta-feira, 6 de abril de 2017

O Quarto Crescente e a Décima Terceira Vértebra



                Chegou a “Aporema”. É uma festa que se comemora 4 vezes por ano (significa ”ver longe”. Algumas nações indígenas a batizaram de Mombyry Ma ). Possui data móvel . Ocorre na lua nova mais próxima aos equinócios e aos solstícios. Se possível  a comemoro só.   Assim consigo ter as luzes do local em que estiver “nas baias” e posso realizar minhas astrofotos em paz.
Não confundir com “aporema”. Este um silogismo dubitativo onde se apresentam raciocínios opostos com argumentos igualmente válidos.(  este vem do grego “apórema”...)
                Desta vez por razões para lá de mundanas a Aporema foi festejada com cerca de 50% do disco lunar iluminado. Mas com apenas 50 % do disco iluminado este também só deveria infernizar durante 50% da noite (mais sobre o assunto a frente)  . Depois ela se põe.  Estamos no quarto crescente. Se fosse quarto minguante ela nasceria.  Façam a experiência. Não falha nunca...
                São épocas de aguas magras e assim a Aporema do equinócio de outono este ano será novamente nos claros céus Buzianos.  Me comprometo a conseguir realizar toda a folia ( incluindo aí pedágio , combustível e alimentação ) com a módica quantia de 200 reais. Festa da CUT. Muito pão com mortadela...   
                Com estas condições de contorno parti no dia 03 de abril de 2017 rumo a terra de José Eustáquio. Levava comigo o Newton ,  Mlle. Herschel, computador, câmera e uma muda de roupa.
                Adoro viajar só. Pensar que passaria dois dias  em silêncio era como ouvir poesia. Não por misantropia, mas quase. A vida de casado só é viável graças as benções de  Moira. Já falei isto por aqui e a própriafalou também. E no Senado Romano...
                Uma vez instalado realizo o primeiro ritual da Aporema. Colimar o velho Newton. Depois de alguns ajustes me dou por satisfeito. Mais tarde vou perceber que deveria ter insistido mais , lutado mais e feito a colimação direito...
                O problema principal da falta de tempo é que como você tem que maximizar o tempo de observação muitas as vezes coisas delicadas são feitas meio que “nas coxas”...
                Desta forma eu decido utilizar em vez de uma estrela um DSO para fazer o alinhamento polar. Ngc 2516 vai cruzar o meridiano as 19:01:30. O problema de utilizar um DSO é que como este cobre quase 30´ de firmamento você trabalha com um erro possível ao redor de 15´para cada lado. Mas como eu nunca tinha feito assim resolvo experimentar. A final não estamos na NASA. E já ouvi histórias sobre o que eles fazem na NASA de arrepiar os cabelos... 
                E tendo conjugado teoria e pratica ( nada vai funcionar direito e  não se vai saber porque) começo a observação.
                Geralmente tenho um plano elaborado no note pad. Como gosto de termos náuticos chamo a este de “derrota”. Abaixo a “derrota” planejada

Começo bem. O primeiro objeto da lista Ngc 2546 é um alvo que queria re-fotografar de forma mais digna para o “ Projeto Lacaille”. O livro esta “pronto”, mas ainda há acertos a serem resolvidos.  Mas no caminho acho um campo ainda mais interessante. A estrela  OS Puppis é uma bela dupla em um agrupamento que não conhecia logo ao lado de Ngc 2546. Pode ser um asterismo. Mas não parece... Vai ficar na conta dos míticos José Eustáquio e de Silvano Silva. J.E.S.S. 13

                Depois sigo os planos. Desta vez fui abduzido pelo Stellarium. Durante a elaboração da derrota neste programa acreditei na breve descrição de Ngc 2571. Não era o que parecia. Mais para campo estelar que para aglomerado.  Devia ter desconfiado do “71” ao final do número.
                Depois disto ainda é cedo. Mas resolvo queimar a largada e com a lua ainda no céu tento a sorte em Leão. Desta vez tinha sido abduzido pela “ Sky and Telescope” de abril que apresenta uma interessante e tentadora matéria sobre o grupo menos observado de galáxias em Leo.          M 95, 96 e 105. Alvos definitivamente mais difíceis que as mais simpática M 65 e M 66 que juntamente com Ngc 3628 formam o tripleto mais famoso da constelação.
                Quando acho que localizei algo e resolvo tentar fotografar o alvo o céu norte começa a nublar. Depois o sul também. Eu transito de ateu a herege em poucos segundos e começo a blasfemar. É evidente que algo conspira contra mim e que isto não pode estar certo. Palavras impublicáveis são dirigidas aos céus e depois de meia hora parecem ser ouvidas.  A noite abre novamente.  Tiro algumas fotos da região onde supunha estarem M 95 e 96 e descubro que minha impressão era apenas isto. Uma impressão. Agora boto a culpa na Lua. E no alinhamento do Goto de Mlle. Herschel.
                Refaço a rotina de alinhamento utilizando outras estrelas como guia (creio que Acrux e Alfa Centauro).
                Decido fazer um teste. Fossem tempos menos politicamente corretos eu chamaria            M 104 ( A Galáxia do Sombrero) de vadia. Ela  é facinha ( pelo menos tão facinha quanta pode ser uma galáxia) . O teste funciona e percebo que o goto está suficientemente preciso. M 104 aparece senão centralizada, dentro do campo de minha ocular de 26 mm.  Embora quase invisível com visão direta ela é óbvia.  Com mais aumento ( 70,5X) e olhando de rabo de olho percebe-se, ainda que de forma discreta, sua faixa de poeira característica.

3 X drizzle no DSS


                Astrofotografia não é exatamente uma coisa fácil. Mas duro é mais difícil ainda. O focalizador original do Newton empenou (nunca deixe alguém transportar seu telescópio.) E tive que substitui-lo por um genérico “Xingá Linga” (também conhecido como “Ali Baba”). Meu sonhado Crayford dual speed não só não esta disponível em nenhuma loja brasileira como as taxas e a entrega   tornaram as coisas difíceis na “Astronomics”.  A coisa anda feia para um empresário pai de dois neste nosso paizinho. O focalizador e um sistema de acompanhamento são cada vez coisas mais distantes.  Quando ganha-se algum dinheiro é melhor guardar pois  a maior parte do tempo não ganha-se dinheiro algum... 
                De volta ao céu decido esperar a lua realmente partir e retorno ao plano inicial. De novo tentando melhorar as fotos do “Projeto Lacaille” faço imagens de Ômega Centauro. Respeitando a proposta do livro as imagens não devem afastar-se muito do que é observável visualmente. Mas um pouco mais é sempre melhor. Afinal um dos anexos vai tratar astrofotografia e Ômega Centauro é um “showpiece”. E apesar da facilidade e talvez em razão desta nunca fiz uma captura deste com Mlle. Herschel. Todas as fotos que possuo de Ômega foram realizadas ainda com minha antiga equatorial EQ 3-2 ( Hipatia). Acho que uma delas continua  no livro. O foco ficou a desejar e com a colimação ruim as coisas ficaram de doer. A noite se anuncia mais para “Rot n´Stack” do que para “DSS”.  (São dois programas de pós processamento de fotos astronômicas.  Um aceita qualquer coisa. O outro demanda algum capricho...)   

                Aproveitando a proximidade resolvo conhecer Ngc 5460. Uma grata surpresa na noite. Delicado aglomerado aberto entre o Centauro e Lupus. Um daquele raros objetos que são melhores visualmente que na foto...  Me recordou o “ Aglomerado de Cheshire” (Ngc 5281) também em Centaurus.  Confesso que a foto poderia ter ficado melhor. Mas este é mais um para o delirante   “Projeto Tudo que Existe”.

                Em algum momento da noite resolvo visitar Júpiter. Não sou um cara muito planetário, mas acho sempre divertido tentar perceber a grande mancha e ver como estão organizada as luas. Desta vez foi uma boa desculpa para tirar as teias de uma Plossl 5 mm que possuo e que nunca sai da mochila ( guardo as oculares na mesma mochila da câmera e das lentes...). Com muito pouco eye relief e de difícil foco nunca me animo a tentar tanto aumento . Mas desta vez funcionou bem. A grande mancha era óbvia com 240X de aumento e apesar de penar um pouco para fazer o foco com meu focalizador de m... e uma ocular à altura acabou valendo o esforço. Comprei ela (a ocular de 5 mm)  quase de graça...
                Mas desconfio que quando você transita no Synscan para o modo “Solar System” você acaba com o alinhamento do goto feito para navegar entre estrelas. Ao voltar para meus queridos DSO´S  Mlle. Herschel não acha mais nada. Lá vou eu de novo realizar a rotina de calibração do goto. 
                                Finalmente Selene deixa a sala e me volto para a galáxias de Virgo. M 95 e Cia. LTDA. Já vão mais baixas e prefiro deixar para outro dia. Das galáxias da derrota planejada acabo conseguindo apenas Ngc 4526. Respeitada as proporções me sinto fazendo uma das imagens de campo profundo do Hubble. O registro mostra muito pouco mas mostra que em se apontando para Virgo dificilmente não se registra uma (ou mais galáxias) em quase qualquer campo escolhido. 4526 é chamada de “A Galáxia Perdida”. Esta noite ela foi a galáxia achada. Mlle Herschel mirou em M 49 e eu fotografei Ngc 4526...

                Continuo tentando a sorte por Virgo mas sem nenhum sucesso. A lua embora não estivesse mais presente parecia assombrar os céus em uma espécie de “Crepúsculo Lunar Astronômico” (A lua a menos de 18o abaixo do horizonte).   Pior que isso é ter a impressão que a lua tem propriedades quase homeopáticas .  Depois de habitar o céu durante parte da noite mesmo que esta seja diluída até a inexistência ela continua apagando DSO´s.
Em algum momento da noite passeando por Virgo e procurando fotografar galáxias por tentativa e erro devido a T.P.M. de Mlle. Herschel eu ainda capturo a passagem de um satélite “bemmm” lento. Segundo minhas pesquisas trata-se do Gorizont 26. Um satélite de comunicação russo que habitou uma orbita geoestacionária até março de 2007 quando saiu de serviço. Atualmente está em uma orbita cemitério.
Momento Hora do Brasil:
Órbita cemitério, também chamada órbita super síncrona, órbita de refugo ou órbita de descarte, é uma órbita significativamente acima das órbitas síncronas onde as espaçonaves são colocadas intencionalmente ao final da sua vida útil. É um procedimento adotado para minimizar a probabilidade de colisão de detritos com espaçonaves operacionais gerando ainda mais detritos.
Uma órbita cemitério é usada quando a alteração de velocidade necessária para retirar uma espaçonave de órbita é muito grande. Retirar um satélite de uma órbita geoestacionária requer uma velocidade de 1.500 m/s, enquanto reposicionar esse mesmo satélite numa órbita cemitério requer uma velocidade de apenas 11 m/s.”
            

            Ele demorou mais de 140 segundos para cruzar cerca de 1o firmamento. Foram 7 fotos com 20 segundos de exposição até ele desaparecer de meu quadro. Supondo que demorei cerca de 3 segundos entre cada foto faça as contas e veja o que descobre a respeito do moribundo satélite russo.   Ahhh!!! É incrível registrar algo que deve possuir uma magnitude por volta de 17...
            Depois disto tento a sorte com M 83 só para me lembrar que o Cata-vento Austral é um alvo difícil. Faço algumas fotos mas percebo rapidamente que o Deep Sky Stacker vai gerar apenas “desastres binários”.  E mesmo o Rot n´ Stack não fará muito pela causa.


 M 83 versão "desastre binário"... Astrofotografia é a melhor diversão. 



            Com a colimação ruim, Mlle. Herschel voluntariosa e com um alinhamento polar que não deu muito certo decido brincar de “5 segundos”. Escolho um alvo fácil e faço de uma a três exposições de cinco segundos. Astrofotografia realista. Recordam muito o que se percebe pela ocular. Astrofotografia é muito divertido e atrai muitas pessoas ao hobby. Mas também afasta. O cara vê um DSO fotografado e depois compra seu telescópio. Quando aponta para o mesmo alvo (supondo que o encontre) e percebe uma pequena manchinha (quando percebe) e lá se foi a novo astrônomo... Astronomia amadora é para quem gosta e não para quem quer. O adjetivo já deixa isto bem claro.
"5 Segundos"
Decido que é melhor esperar pelo dia de amanhã e abro uma cerveja...  
Aprendi uma lição valiosa neste dia. Nunca fazer alinhamento polar usando um DSO como referência.
No dia seguinte começo com mais calma e faço uma colimação mais esmerada (mesmo assim não ficou grandes coisas. Esquecer o colimador é um erro...).
Com tudo pronto para realinhar o telescópio novamente o tempo dá uma fechada. Sem horizonte sul sem alinhamento polar. Enquanto espero resolvo brincar com a lua. Tiro algumas fotos com foco direto e decido tentar algo novo. Empilho duas Barlow 2X e com uma simulação de um telescópio de 4800 mm de distancia focal descubro que é difícil fazer foco. Mas com uma “trapizonga” montada eu consigo fazer algumas fotos que com um certo “parasitismo” luminoso apresentam resultados mais para promissores que propriamente interessantes. Preciso limpar minhas Barlows com urgência. E mandar pentearem o gato com mais frequência. Não sou um astrofotografo muito de lua. Mas as coisas podem mudar ...

Barlows em série... 


Decidido a fazer um alinhamento polar correto e sabendo que a lua só vai “aliviar” bem mais tarde fico novamente brincando de “5 Segundos”.
Plêiades do Sul - "5 Segundos".
"5 Segundos" - Ngc 3532

Quando observo na versão “Lobo Solitário” costumo ter a companhia de meu telefone. Coloco ele para tocar as músicas que gosto e quando quero alguma companhia mais “humana” costumo colocar o “Cosmos” original (com o Sagan) para “tocar”. Esta noite o episódio foi “A Espinha Dorsal da Noite”.  Afinal, mesmo em Búzios, o miolo da Via Láctea (na Tríplice fronteira entre Escorpião, Sagitário e Ophiucus) apresenta-se leitoso quando vai se erguendo no céu Bortle 6/7 da Armação. Chamo esta região de nossa galáxia de “ A Décima Terceira Vértebra”.  Pretendo fotografa-la mais tarde.
Finalmente as 23:22:03 segundos eu alinho o Newton com auxílio de Acrux.  E testo diversas estrelas guias para alinhar o goto. Finalmente com o ajuda de Antares e Arcturus eu consigo que Mlle. Herschel crave alguns DSO´s dentro do campo de minha ocular 26 mm.
Já tarde da noite eu começo a fotografar de fato. Fugindo totalmente dos planos e abandonado Virgo a sua própria sorte ( o efeito “homeopático” da lua vem parecendo se confirmar empiricamente...)  consigo perceber visualmente M 107. O último globular Messier de Ophiucus para minha coleção. A colimação e o focalizador estão me tirando do sério. Mas como Mlle. Herschel está boazinha então insisto mais um pouco com a câmera no Newton.

Assim vão as coisas quando abato um objeto que há anos vinha me traindo e que eu começava a suspeitar ser uma entrada falsa do New General Catalog. Não era... Ngc 6400 existe. Fiz umas poucas fotos para registro e este é  mais um DSO para “Projeto Tudo que Existe”. Não é exatamente um “blockbuster”.

            O plano agora e para o resto da madrugada era realizar algumas fotos em Pig back com minha 75-300 mm. E montar o set up completo. Com direito a banquinho e computador. Bossa Nova...

Só não contava com a condensação. Preciso melhorar o kit de campo e me lembrar de secar a lente entre as fotos.
Mas fico feliz em ver que o sistema funciona e sou capaz de ficar viciado no “Astrophotography Tools”. E com 300 mm é mole fazer exposições de 1 min (e até um pouco mais) sem acompanhamento. Melhor ainda fazer 30 e poder passear pela cozinha enquanto tudo acontece automaticamente.   Aguardo ansioso poder fazer esta brincadeira de novo. Desta vez com direito a mesinha de camping e uma barraquinha para proteger o computador do sereno. A região de Antares vai receber uma nova visita em breve....


Depois ataco a “Décima Terceira Vértebra”. Mas aí a condensação já começou a se instalar e não aproveito quase nada das 30 fotos feitas... outro encontro marcado para a próxima Lua Nova.  A foto que abre este post é resultado de apenas uma exposição de 1 minuto com ASA 800.
A noite já vai madrugada e eu tenho que viajar de volta para o Rio na manhã seguinte.
A Aporema está encerrada. E já penso em realizar um carnaval fora de época mês que vem .

P.S. Por razões de rigor histórico minha cabeça equatorial deixou de ser Mme. (Madame)  Herschel e se tornou Mlle. ( mademoiselle) Herschel. É um tributo a Caroline Herschel , irmã de William e não  a sua esposa. Caroline Herschel nunca se casou. Foi senhorita a vida toda...
           
           


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